Elegia para meu avô Mário (C. Leonardo B. Antunes)


Faleceu o meu avô, o meu amigo, o meu herói,
que completaria oitenta e duas voltas pelo sol,
vendo jogo do Coríntians na TV ou pelo rádio
(muitas vezes ambos para não perder outra partida),
reclamando dos legumes e querendo uma fritura,
que não foi jamais cavalo para só comer alface:
"pega essa verdura que tua avó te deu e – faz favor –
joga lá na Fernão Dias no caminho para casa."

Desde julho eu vinha, avô, com um aperto no meu peito,
desde que te vi fraquinho como não te via há tempos,
desde um aneurisma que venceste mesmo tendo apenas
uma chance em vinte: "corta logo!", foi o que disseste
para o médico que estava mais nervoso do que tu.
Tinhas já sobrevivido a tantos cortes, cirurgias,
um derrame, e ainda terias mini-infartos na UTI.
Nada disso te venceu. Viveste ainda muitos anos.

Mal havias terminado a cirurgia e já querias
ir embora. "Já estou bom. Leonardo, desamarra ali",
mas eu não podia desatar-te os pulsos das fivelas,
que, como último recurso, os enfermeiros te impuseram,
para te impedir de completar aquele plano heroico,
teu retorno para o lar, teu nostos, prêmio a que sabias
ter direito por sobreviver àquilo que tão poucos
sobreviveriam, aristeia de resiliência.

Muitos meses se passaram para te recuperares.
Eu, a cada vez que vinha, desejava te dizer
(muitas vezes mesmo o disse, mas jamais achei bastante,
pois desconversavas, não sabias o que responder):
"Sabes, vô, tu sabes, vó, que poucas vezes fui feliz
como fui nas férias que passamos juntos n'Atibaia,
empinando pipa, pedalando bicicleta muito
cedo para ir à padaria comprar pão quentinho,

indo à locadora três ou quatro vezes por semana,
pois o videogame precisava sempre de outros jogos,
indo ao pesque-pague e vendo o vô se acidentar no anzol:
'Olha, Leo, se o anzol prender assim no dedo não tem jeito.'
'Calma, vô, eu sei. Tu já disseste. Calma! Mal entrou!'
'Não, não, não. Não tem mais jeito. Tem de perfurar a carne,
para que ele saia por um furo novo e não te rasgue.'"
Sem nenhuma economia, davas todas as lições.

Antes eu achava que fazias dessa forma apenas
para eu ver como era forte e resoluto o meu herói.
Hoje penso que fazias, na verdade, por ti mesmo,
para te lembrar de que podias resistir a tudo,
como resististe agora a quinze dias de hospital,
aguardando a cirurgia a que também tu resististe,
por algumas horas pelo menos, para falecer
já de madrugada, quando o peito teima em me apertar.

Ver-te enfraquecido, avô, me fez lembrar de que também
eu irei morrer um dia e de que todos morrem sós,
mesmo estando acompanhados, como estavas pelas filhas,
pela esposa, minha avó, a cujo abraço logo irei.
Fez lembrar-me de que ainda não criei um filho meu,
um bisneto teu, que agora não verás nem poderás
ensinar a construir a própria cama, como a mim
ensinaste com as tuas fortes mãos de marceneiro.

Soube que quebraste o fêmur quando fui telefonar
para minha mãe, querendo planejar a ideia nossa,
minha e da Diandra, de fazer uma festança grande
em janeiro próximo na ocasião do aniversário,
sextuagésimo, de quando te casaste com a avó.
Eu nem pude te contar, mas já bem sei o que dirias:
"Isso não tem fim, rapaz! Sessenta! Se eu tivesse sido
preso por assassinato estava livre há mais de trinta!"

Não mataste, avô, ninguém, mas mesmo assim ficaste livre,
evitando o fado de teu medo, o de ficar na cama
sem nenhuma autonomia, triste sombra do que foste.
Não convinha, meu avô, que tu morresses dessa forma.
Logo decidiste que, depois de uma última vitória,
era hora de ir ameaçar o diabo com facão
e depois bater cartão no céu noturno de Atibaia
junto de São Pedro, a Pedra Grande e a nossa lua cheia.

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